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  • Foto do escritorICMC-USP

Reflexões na quarentena

O professor Moacir Antonelli Ponti revela como tem sido suas semanas sozinho em seu apartamento.

Semana 1 da quarentena Essa pandemia me pegou de surpresa, eu confesso. Lembro que numa das reuniões de planejamento do Pint of Science, ainda em Fevereiro, eu e a Denise comentamos que Coronavírus talvez não fosse um assunto tão bom para o evento, já que em Maio é capaz que tudo tivesse passado. Talvez seja por estarmos acostumados com outras doenças que se manifestam e ficam contidas na Ásia e outros continentes e que depois não chegam muito fortes por aqui. Na semana anterior, quando chegaram as primeiras determinações de suspensão de atividades na USP, fiquei inconformado que um dos projetos de extensão de maior destaque no ICMC - o Summer School for Girls, coordenado pela Kalinka - estaria correndo risco de não acontecer.


Talvez seja possível não precisar ficar tão isolados, poderíamos fazer um tipo de irmandade: 3 ou 4 pessoas ou casas, entre amigos e família que pudéssemos ficar em quarentena, mas juntos. É um tipo de barganha mental que fiz durante a semana mas não sei se devo, ainda esperando a situação se mostrar.


Na sexta-feira assisti a defesa de doutorado da minha irmã pelo Instagram, feliz pela irmã doutora, mas triste por não estar com ela nesse momento. Valeu o brinde a distância, uma live para fechar o dia com minha mãe e irmãos, ainda num clima de expectativa, de não saber o que vem pela frente.




Semana 2 da quarentena

Ter passado a semana 1 isolado e movendo todas as atividades para à distância: aulas, atendimentos, orientações, planejamento, projetos de pesquisa, defesas e palestras, me afetou mais do que eu imaginava. Ao contrário de outras pessoas que parecem ter um tempo livre extra, percebi que trabalhei intensamente, 3 ou 4 horas extras por dia. Logo no início da semana notícias da Itália e da Espanha, inclusive vinda de conhecidos, mostram o horror da morte e aqui vejo pessoas ignorando o perigo ou apenas fazendo piada. Eu ainda meio adormecido com relação a tudo isso. Na segunda-feira em que teria que começar tudo outra vez, após minha sessão de terapia por Skype, sozinho em casa, a ficha caiu e comecei a limpar tudo. Me olhei no espelho e me barbeei. A quarentena guarda segredos.


Acostumei a ter meu gato, Mimi, ao lado todo tempo. Nos intervalos, a sentar na sacada do meu apartamento e olhar o céu, conversar com minhas plantas, ao invés de ir para o Jardim Secreto do ICMC como costumava fazer. Nos dias em que trabalho demais, Mimi passou a subir no meu colo ou pula no computador exigindo carinho. Pelo menos assim sou lembrado de que existe vida pra além do home office. Aceitei a nova vida temporariamente como é, com a companhia que eu tenho e a saudade dos que estão, eles mesmos, isolados.




Semana 3 da quarentena Ainda com trabalho intenso, vi tudo mudar ao meu redor. A rua mais vazia e as pessoas mais distantes, passou a ser motivo de ansiedade precisar ir ao mercado, ainda mais à farmácia. Fiz compras para um idoso do prédio, e busquei remédios na farmácia da prefeitura para uma outra idosa. A estranheza e o receio de chegar perto de outras pessoas é um sentimento que me transportou para um livro de ficção científica. Meu aluno de mestrado foi aprovado em seu exame de qualificação, e o trabalho continua intenso. Decidi abrir meu canal no Youtube e subir vídeos das aulas online, que já contam 23 na plataforma.


Não dá para notar um plano claro das autoridades para entender a situação, contorná-la e sair dela. Os pesquisadores estão todos trabalhando, dezenas de estudos a cada dia voltados a estudar medicamentos, vacinas, melhores tratamentos. Recebo notícias de que alguns setores do governo tem procurado a Universidade para auxiliar nessa crise. Fico pensando se as pessoas do movimento anti-vacina também serão contra os resultados dessas pesquisas. Fico pensando se essas pessoas se arrependeram, em particular os cabeças que inventaram conspirações, que se beneficiaram de jogar a opinião pública contra a ciência, de causar confusão.

Semana 4 da quarentena Não sei vocês, mas a saudade da família aperta rápido e passei a desejar absurdamente algo simples como sair na rua e ver pessoas. Ainda que com certa ansiedade, fico feliz de sentir o sol quando saio pra fazer a compra da semana. Quando chego no prédio, subo os 12 andares só para sentir minha respiração e meu corpo cansar. Começo a pensar muito mais nos que estão sem trabalho, nas pessoas que podem perder seus empregos e seus negócios, e em como o governo é lento para dar assistência a essas pessoas. Assim como eu subestimei a doença há alguns meses atrás, talvez todos tenham subestimado. Ao mesmo tempo é interessante ver como o mercado se movimenta: como se pronunciam empresários com seus lucros bi/milionários e suas visões sobre para que servem os trabalhadores e qual a importância de suas vidas frente à engrenagem econômica. Revisitei o livro A Peste, de Albert Camus, uma narrativa de 1947 tão atual e real que assusta. No mundo inteiro esse livro foi redescoberto e passou a best-seller mesmo com mais de 70 anos de sua publicação. Transcrevo aqui um trecho que me chamou a atenção:


"O mal que existe no mundo vem quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode fazer tantos estragos como a maldade. Os homens são mais bons que maus, ainda que de fato essa não seja a questão. Mas são mais ou menos ignorantes, e a isso é que se chama vício ou virtude, sendo o vício mais terrível o da ignorância, que julga tudo saber e que, consequentemente, se autoriza então a matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem fino amor sem que haja o maior grau possível de clarividência.” (Albert Camus)

Finalizei a semana santa preparando materiais para um curso de especialização e ouvindo uma casa vizinha fazendo festa. O movimento na rua aumentou muito. Talvez muitas outras pessoas, no centro ou na periferia, estejam festejando hoje, e não sei bem o que pensar disso. Uma alegria num dia, mas a promessa de dias piores daqui duas ou três semanas? Como mitigar a dor de quem está agora sem perspectivas de emprego, ou quem não pode ter o luxo de estar em quarentena? Semana 5 da quarentena Fico feliz de ver que os movimentos sociais se mobilizaram pelas pessoas que mais necessitam - e que ainda necessitarão - nesse período, mas ainda é tão pouco. Fico feliz de saber que a Ivone que ajudou semanalmente nas tarefas domésticas do meu apartamento por tanto tempo e agora está sem poder trabalhar, vai poder receber o auxílio, ainda que mísero, de 600 reais para sobreviver e que, ao fim, até mesmo o governo tão guiado pela economia foi obrigado a olhar para a população que precisa.

A vida nova já virou rotina, não é mais novidade ficar no computador todo o dia. É um alívio por um lado não precisar ir para o trabalho, não gastar tempo entre coisas, e um perigo por outro: as horas tem menos sentido do lado de dentro, a sala virtual nunca fecha, o Whatsapp, o Telegram, nunca desligam, há sempre demanda para ser atendida. Reparei que estou há 2 semanas sem me exercitar e prometo que farei isso na próxima.

Vejo do meu apartamento uma carreta que buzina, ao som de “Que país é esse”, pedindo a reabertura do comércio. Um parente muito próximo que vive mandando vídeos e fake news sobre a situação, também é a favor de que tudo volte como era antes. Eu antes ignorava tudo mas passei a ver só pra ter uma ideia de como é a mensagem. Percebo que os que querem confundir, enganar e manter as pessoas no escuro, continuam trabalhando firme nas redes sociais: a mensagem transmite muito ódio em meio à desinformação. Está confirmado que o congresso mais importante da minha área, no qual finalmente publiquei um artigo pela primeira vez esse ano, está confirmado para ser online. Se seguiram a ele muitos outros, alguns deles no Brasil, se reinventando para sobreviver. Em um deles participo da organização e fico triste de constatar que não encontrarei meus colegas presencialmente esse ano, para dar um abraço e bater papo. Termino a semana grato por ser tão privilegiado: meu trabalho é possível de ser realizado à distância, tenho poupança de segurança, infraestrutura para trabalho e lazer e moro num local que permite fácil acesso a tudo que preciso. Semana 6 da quarentena Na universidade, continuamos ativos como desde o início da quarentena: ensinando, horas de aula e atendimento; pesquisando: encontrando novos conhecimentos, muitos de nós pivotando para conhecer melhor e combater o vírus e sua doença que aflige tanto a humanidade; discutindo como fazer melhor a extensão universitária, mesmo a distância. Dentro da USP, foram desenvolvidos novos ventiladores pulmonares mais baratos e rápidos de produzir, aparelhos para monitorar o ar em ambientes fechados e evitar transmissão do vírus, novos testes têm sido investigados.

Na reunião semanal com colaboradores do Reino Unido, da Universidade de Surrey, noto o abatimento das pessoas por lá também e os mesmos desafios: cuidar de si e dos outros. Fazer compras e cuidar dos mais velhos, enquanto nos trancafiamos em casa. O vírus nem é mais assunto, mas ainda é assunto como lidar com tudo isso, e todas as incertezas. Começam a vir notícias de reabertura de algumas cidades, de algumas atividades no próximo mês. Ao mesmo tempo, especialistas apontam que não é bem o fim. Vejo muitas pessoas, antes resistentes, mudando de opinião. Eu mesmo revejo as minhas - enquanto lavo roupa e a louça, ouço podcasts como o Entretanto da minha colega professora de economia da USP, Laura Carvalho, que essa semana fala sobre “A pandemia e o futuro do trabalho”.



Há quem vá além e diga que é o fim do capitalismo como o conhecemos, que haveria a chance de uma transição para um modelo mais socialista, mais inclusivo economicamente. O capital é forte, no entanto, e só sei dizer que essa crise de saúde expõe as grandes fragilidades desse sistema. Permitir, premiar e exaltar o acúmulo de riqueza sem restrições é claramente um erro que agora fica muito evidente. A precarização do trabalho e a desigualdade social se mostram como feridas abertas na nossa sociedade. Vivemos mesmo num tempo muito diferente, esse tempo da COVID-19. Algo sem precedentes na nossa geração e que ficará para a história. Desejo que possa no futuro revisitar esse relato e perceber o sofrimento não foi em vão, que crescemos como humanidade. Creio que sim, seremos melhores. Enquanto isso, no alto do meu privilégio, abro o Youtube para mais uma live de um bom artista, sabendo que terei o que jantar essa noite.

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